“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.”
O dito acima é do evangelho de João, presente na Bíblia, no capítulo 8. É uma frase que instiga, porque nos passa a ideia de que há uma verdade, algo preestabelecido, a respeito do qual devemos conhecer para sermos livres, seja lá o que isso signifique. Embora eu não seja religioso, tenho um respeito enorme pelas religiões e entendo que muita vezes essas frases contidas nos livros sagrados se referem a elementos da própria religião; nesse caso, imagino que a “verdade” se refira a Deus, como detentor de todo o conhecimento, e o que está sendo dito é que cada um deve buscar a verdade contida nele.
Mas, façamos um esforço e tiremos essa frase de seu contexto religioso. A ideia de que há uma verdade única que liberta está difundida, hoje mais do que nunca, em muitas situações do cotidiano. Há sites, revistas, livros que ensinam de tudo, desde coisas simples como a realizar tarefas do dia-a-dia da (supostamente) melhor forma que existe, até coisas das mais complicadas, como qual é a melhor forma de superar o fim de um relacionamento, ou como é o jeito certo de lidar com a falta que faz um parente querido que faleceu. A facilitação da divulgação, da produção e do acesso a conteúdos midiáticos e informativos que as telecomunicações, especialmente a internet, provocou permite que se busque — e se encontre — uma resposta pra quase cada pergunta que possa ser perguntada. Supõe-se que exista uma verdade universal a respeito de cada aspecto do fenômeno humano, do mais trivial ao mais sofisticado, e que há sempre alguém que conhece essa verdade e está pronto para compartilhá-la, mesmo que não seja de graça. Se ela não está disponível online, ou num livro entre os best-sellers das livrarias, ela deve estar com um profissional especialista no fenômeno em questão.
Por isso, ao consultório de um psicanalista ou de um psicólogo chegam diversas pessoas, muito diferentes entre si, trazendo consigo questões muito singulares. Em minha prática clínica com psicanálise, já recebi homens e mulheres e pessoas não-binárias — tanto jovens quanto mais velhas — , com dificuldades de relacionamento, conflitos com a própria sexualidade, crises em relação à faculdade, o emprego ou a profissão, problemas familiares, dificuldades relacionadas ao abuso de álcool ou outras drogas, um luto difícil de viver, um transtorno psiquiátrico, ou mesmo a sensação de que algo não vai bem, embora não se possa apontar o quê.
É muito comum que nas primeiras entrevistas essas pessoas diversas esperem encontrar, comigo ou em mim, a verdade que escapa a elas a respeito daquilo que as aflige. Pensam que seu problema, por mais dolorido ou sofrido que seja, é igual ao de outras pessoas e que, por isso, deve haver uma forma única de resolvê-lo que a psicologia ou a psicanálise detêm. Ou seja, uma verdade a respeito dele que basta conhecer para conquistar a liberdade.
Essa ideia de que há um conhecimento disponível sobre aquilo que me faz sofrer que possa me ajudar pode ser reconfortante enquanto acreditamos nela. Mas posso afirmar que ela é uma… meia-verdade. Uma verdade incompleta, dizendo de outra forma—uma verdade faltante. De fato, é inegável que a psicologia — em conjunto com a psicanálise, com as teorias cognitivas, com a biologia e as neurociências, etc—fornece explicações e condutas bastante efetivas a diversos fenômenos da experiência humana. Há uma grande quantidade de material de excelente qualidade produzido por psicólogos ao longo dos últimos pouco mais de 100 anos a respeito dos mais diversos assuntos que está acessível a quem tiver interesse. Uma passada de olhos pelas seções de psicologia nas livrarias mostram o quanto de material de boa qualidade é produzido e está disponível, e uma busca na internet faz ver que os sites e espaços online que se dedicam aos temas caros à psicologia são muitos, com muita coisa boa à disposição de todos.
Isso se repete em diversas outras áreas do conhecimento. Seja a medicina, a economia, a nutrição, a educação física, a informática, as línguas, a gastronomia… há muito conhecimento de boa qualidade disponível a respeito de todos esses assuntos. Essa verdade, exposta pelo conhecimento científico, está aí para quem quiser conhecê-la. E, mesmo assim, as pessoas sofrem com problemas de saúde que poderiam ser facilmente evitados, sofrem por falta de dinheiro, sofrem por se alimentarem inadequadamente, sofrem por não realizar exercícios físicos ou fazê-los de forma inapropriada, sofrem por não deterem conhecimento sobre as novas tecnologias, sofrem com dificuldades de comunicação, ou por não serem capazes de prepararem o próprio jantar. Enfim, o acesso ao conhecimento não necessariamente evita o sofrimento. Conhecer o saber que foi produzido por outros a respeito daquilo que nos faz sofrer não previne que, mesmo assim, soframos. É como se esse saber que se propõe total deixasse de fora alguma coisa que, em última análise, continua produzindo efeito.
Frente a esse impasse, a saída parece ser olhar para o outro lado. Confrontados com os ideais erigidos pelos conhecimentos e saberes totais, esbarramos sempre em algo de que não nos damos conta, algo que nos escapa, algo que não se inclui. Sem dúvida, não é sem satisfação de alguma coisa qualquer que isso acontece. Mas é, também, com muito sofrimento que nos vemos repetindo erros que já sabemos ter cometido no passado, nos vemos fazendo aquilo que juramos nunca mais fazer, nos vemos sendo alguém que, sabemos, tem participação ativa na reclamação que faz a respeito daquilo que veio a causar sofrimento.
A verdade que vem de fora não traz consigo uma luz sobre isso que, cada um de nós, de forma singular, tende a fazer sempre ou quase sempre mais ou menos da mesma forma; isso que, em última instância, marca a forma como nos portamos frente ao nosso sofrimento de forma única. Disso, o que pode ser dito é o seguinte: a verdade sobre o nosso sofrimento, se pode ser encontrada, está em nós mesmos.
Isso é muito diferente de dizer que cada um causa o próprio sofrimento. Também não é legítimo dizer que há sofrimentos mais ou menos importantes que outros. Aquele que sofre, sofre, e cabe a cada um avaliar o tamanho da sua dor. Não, o que eu quero dizer é outra coisa. Vou tentar dizê-lo com um exemplo: ao se deparar com a morte de um parente querido, como um pai ou um irmão, por exemplo, é raro que não se viva esse momento sem muita dor. Muitos de nós já passaram pela experiência e, outros tantos que não passaram, provavelmente já estiveram próximo a alguém que passou por isso, e pôde notar o seguinte: a forma como cada um experiencia uma perda desse tipo é muito particular. É notável que, entre filhos de um mesmo pai ou uma mesma mãe que venha a falecer, as reações à morte e ao luto sejam bastante distintas. Uns tornam-se deprimidos, se isolam, falam pouco, choram muito. Outros, que aparentam frieza, parecem duros e fortes, mas exprimem sua dor em algum momento particular, num gesto, numa aproximação ou distanciamento dos outros, tornam-se mais agressivos ou então, o contrário, sensibilizam-se mais com as coisas. Dê, a cada um deles, a oportunidade de falar livremente pelo que estão passando, e logo ficará claro — ao menos, para alguém que saiba escutar — que há algo que marca a forma particular de cada um lidar com seu sofrimento.
É desse algo, dessa marca, dessa particularidade, que estou falando. Isso não está contido em nenhuma verdade produzida por ninguém, especialista ou não em certa experiência humana, porque isso só pode ser uma verdade para aquela pessoa, na medida em que ela mesma a reconhece como tal. A forma como cada experiência toca cada um, e o que extraímos disso, é tão pessoal quanto o são nossas impressões digitais; é o que forma, essencialmente, cada um de nós. Mas só pode ser quando assim o reconhecemos, e passamos a fazer disso algo único. Senão, isso é apenas algo que é deixado de fora, por nós e pelos ideais que nos chega a partir de outro lugar e que vivemos perseguindo. Daí advém que a responsabilidade por mudar alguma coisa disso só pode ser nossa, de cada um, na medida em que passamos a nos reconhecer nessas particularidades que, antes, negávamos, ignorávamos, deixávamos de lado.
E isso não é fácil. Se fosse, todos estariam fazendo. É difícil porque é difícil mesmo se desprender de um ideal e abraçar o particular de cada um. É difícil se aceitar nas diferenças num mundo onde se apregoa por todas as vozes que o padrão deve ser seguido. Os caminhos que cada um pode trilhar para reconhecer as próprias particularidades e para construir a própria verdade são quase tão diversos quanto o são as pessoas no mundo, mas é consenso que isso se faz mais facilmente — ou menos dificilmente — com ajuda. O que não dá, mais, é para esperar que a verdade venha de fora. Quando se reconhece que há algo em si mesmo que está implicado em tudo que se faz, do prazeroso ao sofrido, a única saída é buscar construir a própria verdade.
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