Dia 29 de janeiro é comemorado no Brasil o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data foi instituída em 2004, há mais de 20 anos, e mesmo assim, ainda há muita desinformação sobre as transgeneridades, e muita gente que se exime da responsabilidade de entender sobre o assunto e saber que pessoas trans existem e devem ser respeitadas e incluídas no meio social de forma digna. O Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans no mundo (em 2024 foi o 16° ano consecutivo que nosso país “ganhou” essa disputa miserável), e pela maioria dos lugares por onde as pessoas circulam no seus cotidianos, continua sendo raro encontrar uma pessoa trans que se sinta segura o suficiente para se expor enquanto tal (quantas pessoas assumidamente trans circulam pelo seu trabalho? Pela sua academia? Pela padaria que você compra pão? Na loja onde você compra suas roupas?). Falta informação, falta empatia, falta política pública, falta vontade. Falta que as pessoas falem sobre o assunto de forma séria e despida de preconceitos.
No entanto, apesar de todas as dificuldades e complicações, hoje há mais pessoas que assumem sua transgeneridade do que antes, e isso vem sendo notado e tem gerado uma série de reações nas pessoas, nas empresas, nos políticos. Direitos conquistados a duras penas vêm sendo derrubados por todo o mundo. A perseguição tem aumentado. Por isso, é hora de todos, todas e todes que se entendem como pessoas tolerantes, progressistas, que se identificam com pautas das esquerdas políticas, que se consideram simpatizantes ou apoiadores dos movimentos LGBTQIAPN+, se posicionarem mais ativa e explicitamente com relação ao seu entendimento e conhecimento das experiências e vidas trans, para que seu apoio seja efetivo e possa ajudar a proteger esses direitos, fazendo do mundo um lugar menos inóspito para todas as pessoas.
Dito isto, me dirijo agora às pessoas que, em pleno 2025, ainda se sentem confusas quando ouvem falar de pessoas trans ou de transgeneridade.
Quem são as pessoas trans
Pretendo explicar, sucintamente, do que se trata essa vivência, para que não haja mais desentendimentos e equívocos, exceto os causados pela intolerância e pelo preconceito, que não poderão mais ficar disfarçados. Falo como se meu texto fosse mudar o mundo, como se fosse ser lido por muitas pessoas desavisadas, mas tenho a noção de que meu alcance é limitado. Ainda assim, gosto de saber que as poucas pessoas que me leem não terão mais a desculpa da ignorância para serem preconceituosas ou se eximirem da responsabilidade de se engajar nas lutas, quando isso for necessário.
Quando uma pessoa nasce… Não, quando ela está sendo gestada ainda, exames de ultrassom se prestam a verificar qual é a genitália que aquela pessoa que virá ao mundo possui. Essa verificação é absolutamente desnecessária na maioria dos casos, do ponto de vista de saúde, e nesses casos se presta apenas a uma coisa: dizer, antes mesmo do nascimento, se aquela pessoa que está prestes a iniciar a vida é um menino ou uma menina. Todo mundo conhece a regra: tem pipi, é menino; tem pepeca, é menina. Não ignoro, evidentemente, que algumas pessoas em situação de bastante vulnerabilidade ainda gestam sem acompanhamento pré-natal médico, e por isso, esse procedimento de designação de uma classificação baseada no genital não acontece nessa fase. No entanto, fatalmente, acontecerá no nascimento.
Seja como for, essa classificação peremptória gera uma série de consequências. O tal do menino, a partir do momento que é nomeado dessa maneira, passa a ter um universo simbólico próprio dos meninos para representar o mundo à sua volta, entender como as coisas funcionam, interagir com elas, etc. O mesmo acontece com as meninas. Conforme essas pessoas crescem, suas subjetividades vão se formando a partir desse universo simbólico, e das restrições que ele impõe. Meninos usam um tipo de roupa, meninas usam outro. Meninas gostam de brincar de um tipo de brincadeiras, meninos gostam de outro. Todes vocês sabem bem como é isso, porque todes vocês passaram por isso. Há, na nossa sociedade, entranhado na nossa cultura, uma máquina de produzir meninos e meninas, que mais tarde serão homens e mulheres; todo um aparato que molda comportamentos, sentimentos, que define lugares e papéis, que oferece alguns espaços e limita outros, de acordo com essa classificação binária baseada na anatomia. A esse conjunto simbólico e material de comportamentos, lugares, vestimentas, regras etc que se reúnem sob a rubrica menino/homem e menina/mulher damos o nome de gênero.
Essa maneira de funcionar de nossa cultura, com binarismo de gênero baseado na anatomia da pessoa, gera uma série de consequências graves. Machismo, violência contra mulher, disparidade de renda no trabalho entre homens e mulheres, abandonos familiares, homens que não sabem se cuidar minimamente, mulheres que crescem pensando que seus papeis no mundo se resumem ao cuidado (não remunerado) e ao ambiente doméstico… A lista é grande. Algumas pessoas, em seu desenvolvimento, se adaptam razoavelmente bem ao sistema, se integram a ele, defendem-no, se esforçam para mantê-lo funcionando. Isso, obviamente, tem um custo do ponto de vista psíquico, que muitas vezes não é discutido, e que merece um texto só para tratar do assunto. Essas pessoas, que sentem que o gênero atribuído a elas no nascimento estão em conformidade com quem elas realmente são, recebem o nome de pessoas cisgêneras.
Já outras pessoas sofrem mais com esse modo de funcionar do mundo. Algumas delas sentem, muitas vezes desde pequenas, que o gênero que foi imposto a elas no nascimento não condiz com quem elas entendem que são. Elas não gostam de ser chamadas de menino/homem ou de menina/mulher, tem dificuldades em se reconhecer dentro das características tipicamente atribuídas ao seu gênero designado no nascimento, têm problemas em aceitar e ver beleza em seus corpos (especialmente nas características que são tipicamente usadas para definir gênero), não se sentem bem se comportando e agindo no mundo da maneira como o mundo espera que elas se comportem e ajam devido à categoria que foi atribuída a elas. Algumas dessas pessoas, às vezes bem cedo na vida, outras mais tardiamente, decidem que não aceitarão mais ser chamadas, tratadas, enquadradas no gênero a que não sentem que pertencem, e passam a realizar mudanças em suas vidas, seus corpos, seus comportamentos, sua vestimenta, seus nomes, com o intuito de transitar para fora dessa caixinha inicial.
Essas pessoas são as pessoas transgêneras.
Multiplicidade de experiências trans
Essa explicação sobre as pessoas trans se pretende simples e generalista. Mas é preciso explicitar que as experiências trans e as identidades transgêneras são múltiplas, diversas e abertas, diferindo radicalmente da rigidez e do binarismo das identidades cisgêneras. Ao processo, citado no parágrafo anterior, de trânsito para fora do gênero designado no nascimento, damos o nome de transição de gênero. A transição de gênero implica necessariamente em um descolamento do gênero atribuído ao nascer, mas não obriga ou determina nem como esse descolamento acontecerá, nem um ponto de chegada a que esse trânsito deverá se destinar. Isso significa que uma pessoa que teve o gênero masculino atribuído a ela ao nascer, caso faça uma transição de gênero, deverá se afastar das características que definem, tipicamente, o gênero masculino, mas não necessariamente abandonará todas essas características, nem deverá obrigatoriamente, assumir características típicas do gênero feminino. O mesmo vale para uma pessoa que foi designada como sendo do gênero feminino ao nascer e que transiciona. Espera-se que algumas das características desse gênero sejam deixadas para trás, mas isso não implica de maneira nenhuma um objetivo único e homogêneo para todes.
Essa multiplicidade de maneiras como uma transição pode ocorrer, e as inúmeras identidades que surgem com esses processos às vezes recebem nomes específicos. Há pessoas trans que se identificam como travestis (pessoas que foram designadas como do gênero masculino ao nascer mas que transicionam para assumir papeis e características tipicamente femininas); há pessoas que se identificam como homens ou mulheres trans; há pessoas que se identificam como transfemininas ou transmasculinas, realçando que as características que assumem ou desejam assumir estão mais próximas do que é considerado tipicamente feminino ou masculino, sem necessariamente dizer que são homens ou mulheres; há ainda as pessoas que se encaixam (ou preferem ficar desencaixadas, o que também é válido) na ampla categoria de pessoas não-binárias. Algumas pessoas, inclusive, vão defender que todas as identidades trans, nomeadas ou não, são necessariamente não-binárias — ou seja, fogem à padronização de gênero binário definido por homem/mulher típicos.
Seja como for, e nomeando-as ou não, as identidades trans são muitas e explicitam a diversidade e a fluidez da experiência humana.
Dia Nacional da Visibilidade Trans
Nesse Dia Nacional da Visibilidade Trans, é importante lembrar que o reconhecimento da existência e da multiplicidade de identidades trans, além de um gesto de humanidade e empatia, é também uma posição ética e política. Em um mundo que insiste em violentar pessoas pela maneira como elas vivem, que silencia e invisibiliza vidas e corpos por serem quem são, é responsabilidade de cada pessoa agir no seu cotidiano para mudar isso. Esse Dia da Visibilidade Trans convida à reflexão sobre que mundo construímos todos os dias, e para quem. Cada um e cada uma, no seu dia-a-dia, pode ajudar a transformar sua casa, seu trabalho, seu bairro, sua cidade, seu país, em lugares mais justos, acolhedores, diversos e inclusivos. Sugiro algumas possibilidades, mínimas e autocontidas, que claramente podem ser expandidas:
- No convívio com pessoas diversas que você encontrar na vida, evite “adivinhar” a maneira como tratar o outro baseado na suposição de que ela se encaixa nesse ou naquele gênero; na dúvida, pergunte como aquela pessoa quer ser tratada, ou use linguagem neutra e inclusiva;
- Não questione o processo de transição de uma pessoa transgênero: não é da sua conta, nem é determinante na formação da identidade, se ela passa pelo processo de hormonização, se ela fez algum tipo de cirurgia, se ela tem interesse em usar esse ou aquele tipo de roupa; cada um deve ser livre para expressar sua identidade de gênero como for mais conveniente para ela dentro de suas condições socioeconômicas e psicológica;
- Em redes sociais, siga e apoie o trabalho de pessoas transgêneras; há, como é de se esperar, pessoas incríveis fazendo trabalhos incríveis em todas as áreas da atividade humana; siga e compartilhe também os conteúdos publicados por entidades, associações e organizações que trabalham pelo aumento da visibilidade das vidas trans, pela maior inclusão e pela diminuição do preconceito e violência; deixarei, no meu Instagram, na descrição da postagem de divulgação desse texto, várias sugestões de perfis interessantes para vocês seguirem;
- Às pessoas que são proprietárias ou gerentes de comércios, empresas, negócios: se atente, nos processos de contratação, à inclusão na definição de critérios para vagas e, sempre que possível, contrate pessoas trans;
- Caso presencie transfobia e discriminação, não se ausente: ajude na defesa da pessoa trans que foi agredida, mostre que você tem lado, acolha e ofereça ajuda;
- Durante eleições, apoie candidaturas trans ou, no mínimo, candidatura de pessoas cis que sejam progressistas e já tenham explicitamente demonstrado apoio às causas das lutas das pessoas trans;
- Inclua as pessoas trans que cruzarem o seu caminho, seja numa roda de amigos, seja na fila do banco, seja no trabalho.
Espero que esse texto contribua, minimamente que seja, com um aumento do entendimento e da tolerância das experiências e identidades trans e que possa chegar a muitas pessoas, especialmente às que ainda se consideram ignorantes sobre o assunto. E estou à disposição para continuar essa conversa com quem se interessar, seja nos comentários abaixo, no meu Instagram, no meu Whatsapp ou pessoalmente.
E se você é trans ou está em processo de dúvidas e questionamento com relação ao seu gênero
Seja bem-vinde. Esse é um momento importante, muitas vezes difícil, que pode parecer assustador e solitário. Procure pessoas que já passaram por isso antes, converse, escute, se informe. Procure grupos de apoio e convivência para pessoas trans e LGBTQIAPN+. E faça terapia com alguém que te respeite e te trate de forma digna. Sou psicanalista, com formação em psicologia, e minha clínica e minha escuta estão abertas a você.
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