Tag: crônica

  • Invisível

    Invisível

    Você se sente invisível.

    Sensação mortificante de que ninguém lhe vê, de que ninguém sabe de você, de que ninguém conhece sua verdade. Você se percebe andando pela rua, se percebe trabalhando, se percebe conversando com pessoas, familiares, amigos, e os olhares lhe atravessam, como se ali onde você deveria estar não houvesse nada.

    No entanto, as pessoas estão ali, o trabalho existe, os caminhos são percorridos. De onde essa sensação vem? A que ela responde? Você se percebe evitando pensamentos, sentimentos, desejos. Você vê sua vida diminuindo, perdendo a graça. Os amigos estão distantes, o trabalho está desinteressante, o brilho nos olhos não existe mais.

    No espelho, aquela imagem parece borrada, errada. Você se dá conta que nem você se enxerga mais. Você desapareceu, e tudo que sobrou foi uma sombra. Se havia uma verdade para ser conhecida ali, se havia algo para ser sabido daquela pessoa, se havia alguém para ser visto, sumiu. Você se tornou invisível para si mesma.

    O baque. O fundo do poço.

    A reação.

    Você decide mudar, se reencontrar consigo mesma. Voltar a se enxergar. Não é simples. É necessária muita ajuda, muito companheirismo, muita terapia. É preciso encontrar um lugar em que você se sinta segura. É preciso deixar para trás certos hábitos, encarar alguns incômodos. Lugar comum é falar sobre “zona de conforto”, mas se se aplica, por que não?

    O risco é grande, e a vontade de desistir sempre ronda. Mas um dia, acompanhada de velhos amores e novas amizades, você se percebe num lugar antigo de uma maneira nova. Olham pra você e isso lhe provoca angústia: você foi vista. Da morte simbólica da invisibilidade à angústia de ser vista, fica evidente que algo novo se anuncia.

  • Travessia

    Travessia

    Como uma criança que está prestes a fazer uma travessura, olho em volta verificando se nada me impedirá. Parto, então, em direção ao desconhecido. O destino não está claro. Talvez não haja um destino. Mas não importa, a única certeza é a transgressão, e o que realmente importa é o caminho.

    Caminho, então, sem saber para onde. Atravesso escuridões, encontro luzes que cegam, enfrento solidões, me perco em multidões. Às vezes caio na besteira de achar que sei onde devo chegar, e tento me transportar para lá. Outras, me lembro do prazer que há no próprio caminhar, e, perdida, me deixo levar.

    Levo comigo tudo: o que me faz avançar e o que me trava. Clarice nos avisou—nunca sabemos o que nos sustenta. Mas a bagagem é pesada, me atrasa, me cansa. Em algum ponto da travessia é preciso abandonar o que não serve mais, o que caducou, o que rasgou, o que furou, o que queimou. O peso diminui, o ritmo aumenta, o avanço se faz sentir. Mas, será avanço ou retrocesso, se não sei para onde ir?

    Continuo perdida. Todavia, sigo no caminho. Caminho se faz ao caminhar. Me associo livremente a essa direção, àquela, àquela outra, como uma aranha tecendo uma teia. Direções que se cruzam. De vez em quando, penso em desistir. Transito entre o desejo de continuar e o medo de nunca mais me encontrar. O traslado às vezes parece sombrio, tenebroso. Às vezes, parece calmo como um jardim no outono. Mas é constantemente solitário.

    Há, é preciso reconhecer, sempre alguém por ali. É preciso que haja, não se faz isso sozinho. Não importa, quase nunca me sinto acompanhada. No fundo, há um nível de solidão que é insuperável. Transponho o momento de crise, deixo o choro para trás, e sigo meu caminho.

    Caminhando, tranço novos saberes, novos dizeres, novas identidades. Mas não me apego a elas. Assim como elas vêm, deixo que vão. Palavras ganham novos sentidos, velhos sentidos ganham novas palavras. Aos poucos, o que era conhecido vai se tornando estranho. E o que era estranho vai se transmutando em parte de mim. O tempo transpassa meu corpo mudado, e às vezes em um corte abrupto, às vezes de forma gentil, ele me lembra que nunca passa. Mas também nunca para.

    A próxima parada se aproxima. Ficarei por ali, finalmente? Ou seguirei, sempre em frente? Não sei. Avisei no início, o destino era incerto, talvez inexistente. Alguns dizem que há um final: eles que passem.

    Eu? Aposto na eternidade do caminhar.

  • Reconhecimento

    Reconhecimento

    Imagina:
    Estar em algum lugar novamente, onde já se esteve muitas vezes, e não ser reconhecida. Olhares de hesitação, descaso, desprezo. Ou seriam de reconhecimento?

    Então, olhar em volta ao andar pela sua rua, pela sua cidade, pela sua escola, pelo seu bairro, pelo seu trabalho, e não reconhecer ninguém. Tudo novo para se conhecer. Nada reconhecível.

    Pesadelo, sonho, delírio, desejo.

    Solidão?

    Reconhecimento parece ser algo que todos querem. Mas não por qualquer motivo. Sim, reconhecimento pelo trabalho bem feito, pela amizade fiel, pela bondade encenada, pela genialidade exibida, pela coragem esbanjada… Mas não, que não me reconheçam se eu estiver sendo um canalha, se eu estiver roubando, se eu estiver envergonhada, se eu estiver me sentindo horrorosa, se meu fazer não for condizente com meu dizer.

    Reconheço: não estou me fazendo entender. Talvez vocês não me reconheçam ao ler essas linhas. Dirão — quem é essa pessoa que não conheço? Mas, mesmo que reconhecessem, isso quer dizer que me conhecem?

    O medo do desconhecido é maior que o medo de não ser reconhecida? Eu já disse, mudanças nem sempre são fáceis: se mudamos, quem nos reconhecerá depois? Não mudamos por medo de perder o reconhecimento do outro?

    Agora,
    Imagina olhar no espelho e não se reconhecer.
    Imagina, o que pode ser ainda pior, se reconhecer:
    Olhar no espelho e se iludir, achando que aquela é você.

  • Quereres

    Quereres

    Recentemente, quis dedicar todo meu trabalho à minha clínica particular e à minha relação com a psicanálise. Achei, também, que era o momento ideal para perseguir outro querer: escrever mais.

    Faz tempo que tenho gosto pela escrita, admiro quem escreve bem. Exercitei, em tempos longínquos, o hábito de escrever pequenos contos que eu publicava em um blog, mas que se perderam com o tempo. Isso se deu há mais de 10 anos, e depois me acompanhava o pesar por ter abandonado esse hábito. Posteriormente, algumas vezes bastante raras, acabei escrevendo algo, mas poucas dessas já raras vezes eu tornei algum desses textos públicos. Alguns estão disponíveis em outros lugares da internet. Fica aqui o convite a usar o Google. Sempre que publiquei um texto, assinei.

    Mas é nesse contexto que decidi fazer esse instagram: tinha muito texto querendo ser escrito, e já fazia muito tempo. Apesar do insta ser uma péssima plataforma para escrita, é aqui que as pessoas estão (já fiz essa reflexão em algum texto anterior). E é para as pessoas lerem que eu quero escrever. Um querer já bastante antigo.

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  • Dopamina

    Dopamina

    Eu estava em busca de um tema sobre o qual escrever. Minha ideia, aqui, é escrever de forma regular sobre assuntos que tenham intersecção com psicanálise ou, de forma mais ampla, que se relacionem com saúde mental. Pretendo também, embora não seja uma regra, que os textos tragam questões cotidianas. É um desafio que me impus. Preferia fazer isso num blog, ou algo parecido: aqui existe uma limitação de tamanho que me chateia. Mas fora daqui vocês não leriam, a moda é o Instagram. Sei porque eu também não leio. Vivemos no Instagram. Pois bem.

    Essa introdução já suscita um assunto óbvio: redes sociais. É claro, desde o Orkut nossa vida na internet gira em torno das redes sociais. Os mais novos aqui talvez nem tenham conhecido o Orkut. Os ainda mais novos, nem o Facebook. Me pergunto quando superaremos o Insta. Faz parte, o tempo passa. Mas divago. Redes sociais, como assunto, são um prato cheio para quem quer escrever sobre comportamento e saúde mental. E os psis, claro, assim como eu agora, aproveitam. Pululam nas próprias redes textos denunciando os efeitos nocivos que elas podem ter, e de fato têm, sobre a saúde mental das pessoas.

    Sabemos, mesmo quem não é da área sabe, até sobre como nos tornamos dependentes das pequenas doses de dopamina que cada curtida ou outra interação positiva traz, provocando prazer, e sobre como essa dependência nos afasta da realidade e nos mantém refém das telas. Temos consciência da ansiedade que provoca a ideia vendida nas redes de que a vida tem que ser sempre interessante e “instagramável”. Está claro para todos como os algoritmos tendenciosos nos prendem em bolhas ideológicas que nos impedem de ter contato com o diferente, nos tornando intolerantes, além de nos segmentarem, transformando-nos em um grande mercado para a propaganda manipuladora.

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  • Fake

    Fake

    Fake agora é moda. Corrijo: já faz um bom tempo. Mas o termo se tornou mais popular recentemente. Mentira deixou de ser mentira — agora é fake news. O sujeito faz uma conta na rede social com nome e foto falsa para bisbilhotar a vida a vida alheia: fez um fake. A pessoa compra uma bolsa Lui Vitão, ou um tênis da Naike; tá na cara que é fake. Até os golpistas agora se passam por alguém que não são nas redes, um perfil fake. Aliás, aconteceu comigo esses dias: quando vi, tinha outro Caio Conechoni importunando meus contatos por aí. Me senti importante.

    Estou surpreso, aliás, que fake ainda não virou diagnóstico. Síndrome do membro fantasma? Síndrome do membro fake. Alucinação não-psicótica, conhecida como pseudoalucinação? Alucinação fake. Imagina a pseudociese, a tal da gravidez psicológica? Ora, é fake. Por falar nisso, acho curiosa essa associação do psicológico com o fake. Porque é psicológico, deve ser fake. Até escuto o fulano dizendo “isso aí não é nada, é só psicológico” como quem diz “isso não é nada, é fake”.

    Os psicólogos ficam loucos com isso. Os psiquiatras, suponho, também não gostam. É claro, estas categorias dependem da realidade daquilo que é psicológico. Se não for assim, psiquiatra pode ser substituído por neurologista. E psicólogo por… por quê? Mas vou dizer um negócio importante, tanto que vou até destacar em um parágrafo exclusivo:

    Você é meio fake.

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  • Não-saber

    Não-saber

    Para os leigos, os civis, os ordinários, os comuns, aqueles que não foram iniciados nas belezas e nos mistérios do mundo psi, encontrar um psicanalista quase sempre acontece de forma desavisada. O sujeito vai atrás de um psicólogo, ou de um “terapeuta”, procura, escolhe, investiga, e acaba nas mãos de um psicanalista. Não é um grande problema; nem sempre o que a gente tá procurando é o que a gente precisa. Mas, desavisada que está, a pessoa que de repente se vê de frente a um psicanalista sem ter se preparado para isso, muitas vezes leva um susto.

    A treta é a seguinte: o mundo hoje funciona de um jeito que é muito diferente de uma análise. No mundo de hoje, tem jeito certo pra quase tudo. Tem sempre um especialista na TV ou nos reels dizendo “coma isso, não coma aquilo”, “faça esse exercício”, “leia aquele livro”, “transe desse jeito”, “se relacione assim ou assado”. E tem sempre alguém pra dizer pra pessoa que ela tá errada, mesmo quando ela faz tudo como mandam os especialistas.

    O analista não é um especialista (aliás, aviso: encontrou um analista que se diz especialista, desconfie). Um psicólogo pode ser, um analista não. O lugar do analista é o lugar do não-saber: é o lugar da interrogação. Não espere de um psicanalista que ele te oriente como fazer alguma coisa, ou te dê instruções, dicas, conselhos, a respeito de seus problemas. Não vai rolar, porque não pode rolar. Já tá cheio de gente disposta a fazer isso por aí. O analista quer de você outra coisa — ele quer que você se questione sobre o que fica fora do discurso pronto, arrumadinho. Sabe aquela coisa de chegar na frente do analista e começar a contar toda aquela história ensaiadinha? O analista, o bom analista, tem o dever de quebrar essa historinha, e apontar pra onde está o furo dela.

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  • Fala!

    Fala!

    Tu tens grandes projetos, planos, ambições. Mas estás sempre meio ficando para trás, meio deixado de lado, meio te sentindo irrelevante. Tu sabes que tem boas ideias, e sentes que tem algo a dizer de interessante, mas tua boca tá sempre fechada, e teus pensamentos estão sempre guardados. “Um dia”, “logo logo”. E o dia não chega. E a boca não abre.

    E o sentimento sempre te acompanha: “minha hora ainda vai chegar”. Mas os minutos vão passando, as horas se sucedem, os dias viram noites. Tu te empolgas com alguma novidade, com um trabalho novo, com a agitação de qualquer começo. E logo, descobres, era fogo de palha. O tesão sumiu, e ficou só mais uma coisa começada. E a sensação de que tu podias ter feito mais.

    Podias? Por que não fizeste?

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  • A verdade que ninguém conta

    “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.”

    O dito acima é do evangelho de João, presente na Bíblia, no capítulo 8. É uma frase que instiga, porque nos passa a ideia de que há uma verdade, algo preestabelecido, a respeito do qual devemos conhecer para sermos livres, seja lá o que isso signifique. Embora eu não seja religioso, tenho um respeito enorme pelas religiões e entendo que muita vezes essas frases contidas nos livros sagrados se referem a elementos da própria religião; nesse caso, imagino que a “verdade” se refira a Deus, como detentor de todo o conhecimento, e o que está sendo dito é que cada um deve buscar a verdade contida nele.

    Mas, façamos um esforço e tiremos essa frase de seu contexto religioso. A ideia de que há uma verdade única que liberta está difundida, hoje mais do que nunca, em muitas situações do cotidiano. Há sites, revistas, livros que ensinam de tudo, desde coisas simples como a realizar tarefas do dia-a-dia da (supostamente) melhor forma que existe, até coisas das mais complicadas, como qual é a melhor forma de superar o fim de um relacionamento, ou como é o jeito certo de lidar com a falta que faz um parente querido que faleceu. A facilitação da divulgação, da produção e do acesso a conteúdos midiáticos e informativos que as telecomunicações, especialmente a internet, provocou permite que se busque — e se encontre — uma resposta pra quase cada pergunta que possa ser perguntada. Supõe-se que exista uma verdade universal a respeito de cada aspecto do fenômeno humano, do mais trivial ao mais sofisticado, e que há sempre alguém que conhece essa verdade e está pronto para compartilhá-la, mesmo que não seja de graça. Se ela não está disponível online, ou num livro entre os best-sellers das livrarias, ela deve estar com um profissional especialista no fenômeno em questão.

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