Escritos e publicações

  • Nomes
  • Invisível
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  • Visibilidade 🏳️‍⚧️
  • Mudanças
  • Nomes

    Há uns anos atrás, me envolvi com jardinagem. Quem esteve por perto e acompanhou sabe o quanto isso tomou um espaço grande em minha vida. Boa parte do processo de aprender sobre jardins e sobre o cuidado de plantas envolveu aprender o nome das plantas, suas espécies, seus nomes populares, a que família pertenciam do ponto de vista botânico. Ao longo desse processo, percebi algo muito interessante: conforme eu aprendia o nome de algumas plantas, eu passava a vê-las por aí com uma frequência maior. Não é que elas estivessem mais presente nos ambientes do que antes, mas que, a partir do momento que eu passei a diferenciá-las por um nome próprio para cada uma, eu passei a enxergá-las e reconhecê-las com mais frequência.

    É como se, ao nomear algo, eu passasse a distinguir isso do fundo caótico do mundo e da vida. Essa coisa passa a ter contorno, borda. Antes de nomear, tudo num pomar são árvores. Depois, você passa a distinguir uma jaboticabeira de uma pitangueira. Não é difícil perceber que isso se estende para tudo que nos rodeia. No entanto, embora a nomeação seja importante por dar esse aspecto de visibilidade pra coisa, ao possibilitar que a coisa seja manipulável e referenciada em um discurso, nomeações também implicam em consequências pré-determinadas e isso às vezes traz problemas.

    Explico: suponha que você cave um buraco e construa ali um espaço azulejado, bem cuidado, e encha de água. Se você chamar esse espaço de “piscina”, pessoas provavelmente nadarão ali. Contudo, se você disser que aquilo é um reservatório de água, então nadar ali só será uma opção para aqueles que gostam de transgredir regras. Se você ainda disser que o espaço é um “lago”, talvez questionem onde estão os peixes e as plantas.

    O que quero dizer é que nomear as coisas altera como vemos o mundo. Isso é exclusivo do ser humano. Para um pássaro, não importa o nome que você dá para seu espaço cheio de água, ele provavelmente beberá essa água e possivelmente se banhará nela. Cachorros não bebem a água do vaso sanitário? É porque a relação deles com aquilo não está mediada pela linguagem, então a água disponível ali não é diferente da água da vasilha limpa que você oferece a ele. Mas a nossa relação com o mundo está, sempre, mediada pela linguagem e pelos nomes que damos às coisas.

    Eu disse que isso pode trazer problemas. Vamos a eles. Imagine uma menina, como muitas, que é ensinada a entender alguns comportamentos agressivos dos meninos como “carinho” ou “amor”. “Fulaninho puxou a alça do seu sutiã? Ah, é porque ele gosta de você”. Imagine, agora, um funcionário de indústria, trabalhando em escala 6×1, turnos cansativos, sem tempo para família, para amigos, para auto-cuidado, para lazer, que eventualmente deixa de ter interesse pela vida e, ao passar pelo médico, recebe o diagnóstico do seu sofrimento: “depressão”. Imagine, ainda, um garoto que, ao se sensibilizar e chorar ao presenciar uma cena triste, escuta de algum colega ou mesmo de um adulto “seu viado”.

    Percebe onde estão os problemas? As consequências que cada uma dessas nomeações traz? Se nomear traz visibilidade e possibilidade de manejo, também encerra possibilidades de ação e limita o escopo de existência de algo. Pense em diagnósticos psiquiátricos, pense em nomeação de gêneros, pense em explicações para fenômenos atmosféricos extremos, pense em professores apontando “alunos-problemas”, pense nos efeitos de chamar uma região urbana de “cracolândia”. Pense no seu nome e sobrenome. É preciso muita atenção à maneira como as coisas são nomeadas, e que efeitos e consequências elas provocam.

  • Invisível

    Você se sente invisível.

    Sensação mortificante de que ninguém lhe vê, de que ninguém sabe de você, de que ninguém conhece sua verdade. Você se percebe andando pela rua, se percebe trabalhando, se percebe conversando com pessoas, familiares, amigos, e os olhares lhe atravessam, como se ali onde você deveria estar não houvesse nada.

    No entanto, as pessoas estão ali, o trabalho existe, os caminhos são percorridos. De onde essa sensação vem? A que ela responde? Você se percebe evitando pensamentos, sentimentos, desejos. Você vê sua vida diminuindo, perdendo a graça. Os amigos estão distantes, o trabalho está desinteressante, o brilho nos olhos não existe mais.

    No espelho, aquela imagem parece borrada, errada. Você se dá conta que nem você se enxerga mais. Você desapareceu, e tudo que sobrou foi uma sombra. Se havia uma verdade para ser conhecida ali, se havia algo para ser sabido daquela pessoa, se havia alguém para ser visto, sumiu. Você se tornou invisível para si mesma.

    O baque. O fundo do poço.

    A reação.

    Você decide mudar, se reencontrar consigo mesma. Voltar a se enxergar. Não é simples. É necessária muita ajuda, muito companheirismo, muita terapia. É preciso encontrar um lugar em que você se sinta segura. É preciso deixar para trás certos hábitos, encarar alguns incômodos. Lugar comum é falar sobre “zona de conforto”, mas se se aplica, por que não?

    O risco é grande, e a vontade de desistir sempre ronda. Mas um dia, acompanhada de velhos amores e novas amizades, você se percebe num lugar antigo de uma maneira nova. Olham pra você e isso lhe provoca angústia: você foi vista. Da morte simbólica da invisibilidade à angústia de ser vista, fica evidente que algo novo se anuncia.

  • Travamento

    A trava voltou. De vez em quando isso acontece: eu emperro e não consigo escrever. Mas com uma ajudinha aqui e outra ali, estou de volta. Não é simples, estou percebendo, escrever com rotina, semanalmente. Aproveitei o carnaval como desculpa para pular uma semana (perdão pelo trocadilho, parece que hoje eles estão fluindo) e quando vi, já estava pulando a segunda. Mas aqui estou, evitando isso. 

    Voltar envolveu um trabalho de entender porque travei. Vocês também travam às vezes? Não necessariamente para escrever, mas para fazer o que precisa ser feito na vida, no dia-a-dia. Sempre que me vejo nessa situação, a saída passa por olhar para dentro e, nesse trabalho, acabo sabendo algo que ainda não sabia sobre mim. 

    O que acabei de dizer é uma meia-verdade. Não se trata exatamente de coisas que nós não saibamos. Mas há muito que sabemos e ignoramos. As razões para isso são variadas. Entrar em contato com algumas coisas pode ser doloroso, e pode parecer melhor ignorar, fingir não ver. Ledo engano: isso que deixamos para escanteio sempre dá um jeito de produzir seus efeitos, e um deles pode ser justamente o tal travamento.

    A psicanálise fascina por mostrar isso: o fato de que sabemos tão pouco sobre nós mesmas. E aquilo que sabemos, muitas vezes escolhemos ignorar. Mas não dá pra fugir do que ignoramos, e cedo ou tarde, trombamos com isso. Você pode até tentar se virar sozinha para lidar com esse susto, e muitas vezes dá certo. Mas quando não der, uma ajudinha pode vir a calhar. Me procure!

  • Travessia

    Como uma criança que está prestes a fazer uma travessura, olho em volta verificando se nada me impedirá. Parto, então, em direção ao desconhecido. O destino não está claro. Talvez não haja um destino. Mas não importa, a única certeza é a transgressão, e o que realmente importa é o caminho.

    Caminho, então, sem saber para onde. Atravesso escuridões, encontro luzes que cegam, enfrento solidões, me perco em multidões. Às vezes caio na besteira de achar que sei onde devo chegar, e tento me transportar para lá. Outras, me lembro do prazer que há no próprio caminhar, e, perdida, me deixo levar.

    Levo comigo tudo: o que me faz avançar e o que me trava. Clarice nos avisou—nunca sabemos o que nos sustenta. Mas a bagagem é pesada, me atrasa, me cansa. Em algum ponto da travessia é preciso abandonar o que não serve mais, o que caducou, o que rasgou, o que furou, o que queimou. O peso diminui, o ritmo aumenta, o avanço se faz sentir. Mas, será avanço ou retrocesso, se não sei para onde ir?

    Continuo perdida. Todavia, sigo no caminho. Caminho se faz ao caminhar. Me associo livremente a essa direção, àquela, àquela outra, como uma aranha tecendo uma teia. Direções que se cruzam. De vez em quando, penso em desistir. Transito entre o desejo de continuar e o medo de nunca mais me encontrar. O traslado às vezes parece sombrio, tenebroso. Às vezes, parece calmo como um jardim no outono. Mas é constantemente solitário.

    Há, é preciso reconhecer, sempre alguém por ali. É preciso que haja, não se faz isso sozinho. Não importa, quase nunca me sinto acompanhada. No fundo, há um nível de solidão que é insuperável. Transponho o momento de crise, deixo o choro para trás, e sigo meu caminho.

    Caminhando, tranço novos saberes, novos dizeres, novas identidades. Mas não me apego a elas. Assim como elas vêm, deixo que vão. Palavras ganham novos sentidos, velhos sentidos ganham novas palavras. Aos poucos, o que era conhecido vai se tornando estranho. E o que era estranho vai se transmutando em parte de mim. O tempo transpassa meu corpo mudado, e às vezes em um corte abrupto, às vezes de forma gentil, ele me lembra que nunca passa. Mas também nunca para.

    A próxima parada se aproxima. Ficarei por ali, finalmente? Ou seguirei, sempre em frente? Não sei. Avisei no início, o destino era incerto, talvez inexistente. Alguns dizem que há um final: eles que passem.

    Eu? Aposto na eternidade do caminhar.

  • Vazio

    De vez em quando, te deparas com um vazio de ideias. Queres escrever e nada sai. Nada. Ficas olhando, a tela em branco no computador, o cursor piscando, esperando, e nada.

    A que resistes? Se eu não te fizesse essa pergunta, poderia trocar de profissão. O que te prende e trancafia tuas palavras, tuas ideias?

    De vez em quando, tens um vazio no peito. Buscas sentir e nada surge. Nada. Prestas atenção: o buraco na alma, a ansiedade, a vontade de chorar, e nada.

    (mais…)
  • Reconhecimento

    Imagina:
    Estar em algum lugar novamente, onde já se esteve muitas vezes, e não ser reconhecida. Olhares de hesitação, descaso, desprezo. Ou seriam de reconhecimento?

    Então, olhar em volta ao andar pela sua rua, pela sua cidade, pela sua escola, pelo seu bairro, pelo seu trabalho, e não reconhecer ninguém. Tudo novo para se conhecer. Nada reconhecível.

    Pesadelo, sonho, delírio, desejo.

    Solidão?

    Reconhecimento parece ser algo que todos querem. Mas não por qualquer motivo. Sim, reconhecimento pelo trabalho bem feito, pela amizade fiel, pela bondade encenada, pela genialidade exibida, pela coragem esbanjada… Mas não, que não me reconheçam se eu estiver sendo um canalha, se eu estiver roubando, se eu estiver envergonhada, se eu estiver me sentindo horrorosa, se meu fazer não for condizente com meu dizer.

    Reconheço: não estou me fazendo entender. Talvez vocês não me reconheçam ao ler essas linhas. Dirão — quem é essa pessoa que não conheço? Mas, mesmo que reconhecessem, isso quer dizer que me conhecem?

    O medo do desconhecido é maior que o medo de não ser reconhecida? Eu já disse, mudanças nem sempre são fáceis: se mudamos, quem nos reconhecerá depois? Não mudamos por medo de perder o reconhecimento do outro?

    Agora,
    Imagina olhar no espelho e não se reconhecer.
    Imagina, o que pode ser ainda pior, se reconhecer:
    Olhar no espelho e se iludir, achando que aquela é você.